A memória do velho meu amigo não permite mais que ele se recorde ao menos do ano em que isso aconteceu. Ela foi muito atingida por torturas. Mas foi no início dos anos 1970, com toda a certeza. A lembrança só é suficiente para trazer-lhe à mente a imagem do dia em que foi preso por agentes da ditadura militar em Vitória, quando chegava à pensão onde então morava. Imediatamente depois disso foi levado a uma delegacia e ficou diante do quadro da entrada do lugar onde estava afixada todos os dias a relação do que havia para o almoço: um quadro negro com, escritos, nomes de alimentos como arroz, feijão, salada, bife, macarrão e outros. Isso variava a cada dia, da mesma forma que em todos os lugares.
- Qual é a senha? - ouviu enquanto era agredido. Tentou explicar que não se tratava de senha alguma, mas de um cardápio como qualquer outro. De nada adiantou. Espancado, torturado por policiais, foi parar em uma instalação militar da Grande Vitória. Chegou lá com um dos dedos da mão muito machucado pelas torturas e espancamentos. O militar da recepção a ele viu aquilo. "Está machucado?" - perguntou antes de continuar - "Mas vai melhorar!". Ato contínuo imobilizou a mão do rapaz ajudado por outro e, com o cabo do fuzil longo, praticamente esmagou seu dedo contra uma espécie de mesa colocada na sala ou saleta reservada para as torturas dos presos políticos.
Isso foi só o começo. Nos dias que se seguiram esse rapaz, o então jovem repórter fotográfico Gildo Loyola Rodrigues (na foto acima) foi espancado com tanta violência que, ao término de seu suplício, precisou ser internado em uma clínica para tratar a saúde. Viveu para se recuperar e trabalhar por décadas no jornal A Gazeta, de onde só saiu aposentado. Hoje mora perto de Jardim América, em Cariacica, e cuida da mulher, recebe a filha e é paparicado por quatro fieis cachorros que não entendem da política dos seres humanos.
E por que isso tudo? Porque à época em que os fatos se deram Gildo militava em organização política de esquerda. Como todas essas células ditas comunistas eram ilegais ele, que não usava armas nem pregava lutar armada, acabou identificado e preso, sendo supliciado em seguida. Teve a sorte de sair vivo das torturas e de recuperar a saúde em seguida. O mesmo não aconteceu com milhares de brasileiros vitimados pela ditadura, como foi o caso do deputado e engenheiro Rubens Paiva, retratado no filme "Ainda estou aqui" através da obra do filho Marcelo Rubens Paiva, excelente escritor nos dias de hoje.
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Eunice e Rubens Paiva com pombos brancos |
Por sinal, segundo estudos sérios as forças armadas brasileiras talvez sejam as únicas do mundo que nos conflitos havidos ao longo da história mataram mais nacionais de seu país do que estrangeiros. Uma tragédia que marca esse Brasil tão possível de chegar ao sucesso, mas ao mesmo tempo marcado por traumas que nascem e se reproduzem justamente nos organismos militares criados para nos proteger de agressões externas. O período vivido entre 1964 e 1985 foram os mais cruéis nesse caso. E, pior, ainda há por aqui legiões de indivíduos que acreditam no fascismo e no nazismo como sendo a solução de problemas. Tanto que até hoje acreditam num sociopata quase expulso do Exército antes de conseguir chegar a presidência da República graças a uma democracia representativa que tenta seguidamente destruir.
Por todo esse conjunto de fatos nutro ódio e nojo pela ditadura militar brasileira, pela extrema direita canalha que tenta invadir todos os espaços públicos e privados do País como instituições culturais e o fato de seus filhotes bastardos até hoje, passados 60 anos, ainda buscarem emergir dos esgotos fétidos da história para assombrar as pessoas que lutam por um Brasil melhor, livre dos estigmas e traumas do passado. Até promover golpes para tentar assassinar o presidente da República, o vice e um dos ministros do Supremo Tribunal Federal eles imaginam ser possível. Não é, e vão perder novamente. A democracia que temos é obra nossa e não deles.
Rubens Paiva, presente! Gildo Loyola, testemunha!
3 comentários:
Muito triste, vergonhoso!
A que ponto chega a sede de poder!
Só de lembrar, dói!
Ao pensar que estivemos perto de uma reprise!
Anisitia é o caralho!
Salve Gildo Loyola, mais um herói que sobreviveu à crueldade da ditadura militar e ajudou o Brasil a reconquistar a democracia.
Valeu Gildo! 🫂
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