"Ainda estou aqui" é um murro na boca do estômago da hipocrisia e da burrice de alguns. Então por que faz tanto sucesso a ponto de, depois de a brilhante Fernanda Torres ter ganho um Globo de Ouro por sua atuação no filme, a obra ainda concorrer a três Oscars da Academia de Cinema dos Estados Unidos, coisa que nunca antes havia acontecido? Eu me arriscaria a dizer que ele faz isso sobretudo e principalmente porque não é panfletário nem piegas. E era muito simples, fácil, percorrer esse caminho ao filmar a obra de Marcelo Rubens Paiva.
A foto que ilustra esse texto é minha. Eu a fiz ontem por volta das 20h30m, ao sair de uma sessão de "Conclave" numa das duas salas de projeção do Cine Jardins, cinema alternativo num shopping de Jardim da Penha, em Vitória. A bilheteria havia suspendido a venda de ingressos porque o público já lotava a sala número 1 para o filme seguinte. Esse cinema exibe mais de um título por sala e "Ainda estou aqui" chegou a ter três horários. Ontem, tinha a última exibição da noite e o público acorreu ao cinema. Aliás, isso acontece nas grandes salas também. Em todos os lugares.
O público sai em silêncio do cinema. Muitos choram durante a exibição da "película", como se dizia antes. E o filme é delicado até onde foi possível fazer isso. Mostra que uma ditadura sanguinária destrói famílias e projetos de vida, como aconteceu com os Paiva e incontáveis outros brasileiros. Não são mostradas torturas físicas, sangue escorrendo, discursos de "Abaixo a ditadura" e outros clichês, embora isso estivesse à mesa. As imagens de Rubens Paiva morrendo depois de ter sido selvagemente torturado poderiam ter sido feitas, pois ele foi visto agonizando na cela da instalação militar onde foi supliciado, no Rio de Janeiro. Mas não. Todos, calados e chocados são levados a imaginar o que aconteceu. E é fácil!
O Brasil matou incontáveis de seus cidadãos com requintes de selvageria. Stuart Edgar Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel, foi morto sob torturas horríveis em instalação militar também do Rio. A mãe, que buscava respostas e denunciava o fato internacionalmente porque Stuart era filho de norte-americano, acabou morrendo num "acidente" de automóvel. Vladimir Herzog, o Vlado, jornalista de São Paulo, sofreu o mesmo destino que teria o operário Manoel Fiel Filho cerca de um ano depois e no mesmo lugar. São apenas esses poucos os exemplos que dou.
"Autopsia do medo", livro de Percival de Sousa conta a história do delegado Sérgio Paranhos Fleury, torturador psicopata que um dia chegou à sua delegacia e encontrou seus ajudantes em pânico. Na busca por um "subversivo" eles se enganaram, prenderam um pobre bancário e o destruíram de pancadas antes de descobrirem o erro. "Onde está o sujeito?", perguntou Fleury. Os detetives indicaram a cela. O delegado foi até lá, matou o inocente com um tiro na cabeça e mandou jogarem o corpo dele no Rio Tietê com instruções para que os "subversivos" fossem acusados quando o corpo do pobre rapaz fosse encontrado. Eu me inspirei nesse livro e em outros para escrever meu romance "O faxineiro", ambientado na época da ditadura.
A grandiosidade de "Ainda estou aqui" reside no fato de ele não mostrar nada desse gênero de forma explícita ao contar a história do ex-deputado Rubens Paiva. Mas todos imaginam o que se passou com a família de Eunice Paiva, mulher forte e que levou adiante sua vida com cinco filhos, sem jamais chorar e se lamentar ao público. Viveu para que o único homem que gerou, Marcelo Rubens Paiva, pudesse se tornar escritor para denunciar esses tempos de noite fechada do Brasil.
O que mais impressiona é saber que milhares dos que vão aos cinemas ver o filme, sobretudo os jovens, sequer imaginam o que aconteceu no Brasil entre 1964 e 1985. É bom que saibam agora. Bom mesmo e sobretudo porque as hienas da extrema direita tentam voltar, como tentaram em 08 de janeiro de 2023. Fiquem atentos vocês que saem dos cinemas chorando ou calados, sem vontade de falar. O preço dessa nossa liberdade, a que temos desde 1985, é a eterna vigilância.
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