16 de junho de 2025

O passarinho de Lamis

 

Havia um homem no supermercado onde fui ontem, e ele vestia uma camisa com a bandeira de Israel. Falava com a mulher ao lado que seu sonho era dar "uma porrada na cara" do primeiro antissemita com o qual pudesse cruzar. Perguntei a mim mesmo como ele identificaria esse inimigo potencial. Não obtive uma resposta íntima. E para quê? Aquele homem e sua acompanhante sequer devem saber o que significa o termo semita. Muito menos o inverso disso, que se confunde com o governo de Bibi Netanyahu.

Veio-me à mente o lindo texto de Hassan Al-Qatrawi, "Tenda dos infernos", no livro "Diários de Gaza - A memória é uma casa indestrutível". Esse trecho merece ser citado aqui: "A guerra é a ideia mais estúpida para se resolver o ódio entre os povos. Milhares morrem para que outros vivam imersos em ódio e tristeza. As guerras não criam vida, apenas a tornam miserável. O caminho da paz é mais barato e mais simples, mas a voz da paz é sempre rouca, ninguém a ouve direito". Talvez, digo eu, ninguém a ouça nem um pouco.  

Hassan é bacharel em Serviço Social, mestre e doutor em Aconselhamento Psicológico pela Universidade de Trípoli, no Líbano, além de escritor com mérito reconhecido. Morador de Gaza, foi expulso de sua casa pelos bombardeios de Israel e precisou ver a filha Lamis, menina ainda, levar consigo a gaiola com o passarinho que ela tinha como seu companheiro. Todo o pesadelo posterior à expulsão de seu lar que foi destruído por bombardeios sionistas ele viveu ao lado da mulher, filhos e o passarinho de Lamis, a mais nova de todos.

Viu de tudo durante seu êxodo por Gaza. Passou por centenas de crianças sem caminhos a  percorrer e talvez, quem sabe pelo do menino fotografado no mesmo lugar onde ele vivia (foto), sem destino, vendo apenas destruição à sua volta e com o ursinho de pelúcia jogado ao chão. Uma criança só larga seu ursinho quando não tem mais horizonte para olhar e buscar alguma coisa além dele. Pela foto pode-se ver que não há mais nada à frente. A filha de Hassan só não abandonou a gaiola com o pássaro porque estava com seus pais ao lado.

Como eu poderia tentar dizer àquele casal do supermercado que sua ignorância impede que os dois vejam as coisas como elas são e não da forma que as mentiras ditas a toda hora tentam inocular nelas uma versão falsa dos fatos e que atende a interesses pouco confessáveis? Eu não teria como. Nem ao menos chamá-los de sionistas tive vontade. Muito provavelmente eles também não sabem o que quer dizer esse conceito. Semita é termo que se refere a um grupo étnico muito antigo, que engloba hebreus e outros, até mesmo árabes muçulmanos, mas o casal não merece a explicação. Nem a entenderia...

Há quatro dias, em decorrência do fascismo endêmico que acomete o governo de Israel, uma guerra sem sentido atravessa o Oriente Médio, envolve principalmente israelenses e iranianos e coloca em risco a sorte do mundo. Mais uma vez por trás de toda essa loucura sem sentido está a extrema direita mundial, renascida das cinzas da II Grande Guerra encerrada faz 80 anos. E desta feita estando à frente dela o presidente da maior potência mundial, um sopiopata cruel que pode até mesmo colocar fogo nos Estados Unidos para ver triunfarem suas ideias totalitárias e que não cabem em uma democracia moderna.

Gaza está destruída. Não se sabe hoje o que restará dela e que destino vai ter seu povo, mais de dois milhões de seres humanos contados apenas os moradores do enclave e que não têm para onde ir, de que forma comer, onde se abrigar nem sequer em uma "tenda dos infernos" para passar a noite. Bem ou mal, sofrendo de fome, medo e tristeza os seres humanos lutam para sobreviver enquanto existe uma réstia de esperança. O passarinho de Lamis, não. Desorientado, triste em sua gaiola, amanheceu morto mesmo cercado de todo o carinho. Hassan narra a reação da filha: "O passarinho morreu, e eu chorei!"   

Os  animais não conseguem nos entender, perdem a noção de pertencimento mesmo estando em gaiolas onde jamais deveriam estar e com o carinho das crianças. Aliás, nem nós mesmos sabemos às vezes como compreender e explicar certas decisões humanas como as de Netanyahu, sionista assassino, fazedor de túmulos para sobreviver politicamente.        

2 comentários:

Anônimo disse...

Mais um excelente texto!

Silvia Chiabai disse...

Beleza de texto.