11 de abril de 2025

Folha com sangue 2


Nos dias que antecedem a exibição do documentário "Folha Corrida", que conta os crimes cometidos pelo Grupo Folhas, de São Paulo, é preciso ir mais adiante no assunto porque a crônica postada ontem está longe de o esgotar. Estamos falando da década de 1970, quando ser preso ilegalmente, torturado e assassinado pelos órgãos de repressão política da ditadura militar era muito fácil. Vários brasileiros caíram e cerca de meio milhar morreram na garras dos porões repressivos. E ser jornalista não dava passaporte a ninguém, a não ser para terminar no lugar mais sujo e violento dos cárceres nazifascistas.

Ninguém naqueles anos sabia o que um dia seria a internet. Nós, os correspondentes, escrevíamos nossas matérias em laudas de papel, nas máquinas de escrever, e depois levávamos esse material para ser digitado em uma agência dos Correios, no meu caso na Agência Central, que ficava ao lado da Praça Oito de Setembro. Lá o diretor Aderson de Brito Inglez Bonates, pai do hoje psiquiatra e jornalista Paulo Bonates, facilitava a vida de todos e pedia a um funcionário que digitasse o material e o transmitisse rapidamente, via teletipo, para as redações dos jornais. Dessa forma, era o próprio aparato tecnológico de então do governo que nos ajudava. Uma doce ironia...

A gente podia também passar informações por telefone, mas era perigoso. Um perigo chamado "grampo", e não valia a pena correr o risco de ir parar no pau de arara. Quando alguém precisava muito falar, o fazia por códigos vários. Reuniões do PCB, por exemplo, só em lugares sem suspeitas. Como aconteceu num colégio da Ilha do Príncipe ou na ginecologia do Centro de Saúde de Carapina. Lá descobrimos porque uma das mesas tinha duas "pernas" articuladas e que eram abertas para exames. Os médicos do Partidão, cujos nomes ainda se omite, tinham as chaves desses lugares e eles eram os mais seguros.

Revejo na memória o dia em que o velho comunista Vespaziano Meireles, o Meirelinho, se deparou comigo numa reunião dessas. Levou um susto antes de abrir sorriso de orelha a orelha. Era o encanador da casa dos meus avós e jamais poderia imaginar o neto do patrão comungando dos mesmos ideais da militância operária. Velho militante comuna, havia sido craque do Rio Branco com o nome de Parafuso e tinha orgulho de ter conseguido formar os filhos, um dos quais era excelente médio e cirurgião neurológico em Colatina.

Mas voltemos ao assunto. A gente sabia que jornais como a Folha apoiavam a ditadura. Mas não a ponto de serem pombos correios do sistema repressor, ajudando até mesmo na prisão de jornalistas. Que o inferno, se houver, tenha os Frias no seu lugar mais quente. E não é por outro motivo que carros da empresa foram cercados e queimados quando se descobriu que eles eram usados com essa finalidade (foto acima). Até mesmo naquela época havia reação contra as violências governamentais, apesar de todos os perigos.

Por isso é de grande importância o trabalho de dois anos que o grupo liderado pelo diretor premiado Chaim Litewiski realizou para concluir o trabalho "Folha Corrida", que conta toda a história vivida no período ditatorial pela empresa da Rua Barão de Limeira, centro de São Paulo. Os quatro capítulos da obra serão exibidos no domingo dia 27 deste mês às 20 horas pela plataforma ICL. É o retrato de uma época na qual mais de 80 empresas colaboraram com a ditadura militar brasileira, algumas como a Volkswagen, Ford, Kodak, Caterpillar, Toyota, Brastemp, Johnson's do Brasil, Embraer, Petrobrás e inúmeras outras, que a lista é grande. Responsável, esse documentário é fruto de pesquisa conduzida por seis universidades: UFRJ, UFRRJ, UEM, UERJ, FCRB e PUC e levará quem o assistir aos bastidores da repressão, aos anos de terror que o Brasil viveu faz pouco tempo e para os quais não quer voltar nem com anistia, como na (acima, na segunda foto).

Não devemos perder esse tempo atual com os devaneios criminosos da nova extrema direita brasileira que se esconde nas sombras, saída dos esgotos onde dormitou por um longo período de tempo. Ela não se compara nem em sombra ao que houve antes. Recordo-me agora e até com saudades de fatos passados na redação de A Gazeta, a da antiga Rua General Osório, 127. Numa determinada época Carlos Fernando Monteiro Lindenberg Filho, o Cariê, convidou para ser diretor do jornal José Antônio de Figueiredo Costa, o Zé Costa. Era preciso haver um "vaselina" na empresa para proibir publicações passando a mão na cabeça, como se desse conselhos. Coisa que aquele Diretor Executivo de então não fazia bem.

Um dia o secretário de redação Chico Flores ficou em dificuldades porque queria no jornal material sobre a questão da região do contestado Espírito Santo/Minas Gerais, assunto litigioso que vira e volta retornava como tema, e o editor de Política, Gutman Uchoa de Mendonça, já tinha ido embora. Eu havia enviado matéria sobre isso para a Folha de S Paulo na véspera e Chico me pediu as laudas emprestadas para "refundir" e usar em A Gazeta. Entreguei. Horas depois, indo embora da redação para o encontro protocolar com os amigos no Britz Bar, fui abordado por Zé Costa: "Meu filhinho, não repara, mas sua matéria não vai sair". Eu apenas sorri. As opiniões contidas no texto e dadas por entrevistados eram contrárias ao que a empresa da família Lindenberg pensava sobre esse espinhoso assunto. Era essa uma forma indolor - e rara - de censura jornalística.

10 de abril de 2025

Folha com sangue 1


Trabalhei como correspondente da Folha de S Paulo durante os tempos duros da ditadura militar brasileira. Era contratado informalmente pela "Agência Folhas Interior Estados", a figura jurídica que permitia à Empresa Folha da Manhã S/A usar material jornalístico em todos os sete jornais da rede de então, seis de São Paulo e um de Santos, pagando um único pró labore. Meu dileto amigo Rogério Medeiros era o correspondente de O Estado de S Paulo, e este usava os colaboradores para abastecer a Agência Estado. Trabalhando em A Gazeta eu recebia todos os dias o material dessa agência e conseguia identificar vez ou outra as matérias feitas pelo velho Rogério. Os jornalistas têm "impressão digital" em seus textos.

Eram os tempos da censura a tudo. Em O Estado havia censores dentro da redação e quando um material era retirado publicava-se receita de bolo ou trecho de poesia clássica no lugar. Em outros, como o que eu trabalhava, um serviçal da Polícia Federal passava lá todos os dias para entregar a lista das matérias censuradas. O Globo tinha em Roberto Marinho o diretor de redação que não permitia à ditadura se meter na redação. Mas a apoiava. Também eram aliados do regime jornais como o Jornal do Brasil, Estado de Minas, Zero Hora e muitos outros da chamada "Grande Imprensa". Uns mais, outros menos. Hoje, quando se sabe que a Folha ultrapassou todos os limites da falta de dignidade humana isso é muito triste. Só não é inacreditável.

É preciso dizer que nós, correspondentes, não participávamos em nenhum grau dos modos de apoio ao regime militar. A não ser quando éramos informados de que determinada matéria havia sido retirada por "ordens superiores". Em todos os dias, afora raras pautas de iniciativa se o assunto era muito importante, recebíamos ordens das redações e cobríamos fatos. Ninguém era mal informado para desconhecer que a ditadura prendia ilegalmente, torturava e matava. Tomávamos cuidado. Para quem participava de partido proscrito as reuniões eram sempre cercadas de muito cuidado, mas ninguém em momento algum deixou de lutar pelo fim da ditadura militar, o que veio apenas em 1985, após 21 anos do 1964.

O documentário "Folha Corrida", que conta em quatro episódios a história dantesca do jornal para o qual trabalhei, era algo que precisava ser feito. A família Frias, dona daqueles meios de comunicação, cometeu uma série imensa de crimes. Como os artífices das tramas já estão mortos, resta contar a história, o que vai ser feito a partir de maio pela plataforma ICL. Já está havendo pre-estreia e depois da plataforma outros meios divulgarão o resultado do trabalho. Documentos não faltam, imagens também. Vai ser possível saber que durante a ditadura carros de distribuição de jornais do Grupo Folhas eram usados para transportar tropas de choque e policiais que prenderiam ilegalmente, torturariam e matariam brasileiros nos porões da ditadura. Não podemos perder o documentário.

É por isso, dentre outras coisas, que muita gente como eu sente nojo quando ouve a extrema direita atual, descendente da daqueles tempos, pedir "liberdade de expressão" ao falar sobre os demais fascistas atuais. É muito triste ouvir certo débil mental eleito deputado federal pelo Espírito Santo dizer que quer ver morto um presidente da República sem que nada aconteça com ele. É triste ver essa gente desfilando sua até agora impunidade como se não houvesse amanhã. E até mesmo em entidades culturais. Chega a dar arrepios.

Mas também vontade de seguir lutando.  

8 de abril de 2025

A cota do fim do mundo


De repente, não mais que de repente, surge no Brasil mais uma denúncia de corrupção envolvendo um órgão público do Governo Federal. E como sempre a Codevasf, ou Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, empresa criada pelo Estado para permitir roubo de dinheiro do erário. Não tem outra função. E para permitir que caibam nela todos os projetos e ambições sobretudo do Centrão, essa anomalia política brasileira, tem nada menos que 17 unidades administrativas e 16 superintendências regionais. Uma enormidade de cargos e mesmo assim sai briga lá por espaço político.

Agora o alvo é José Juscelino dos Santos Rezende Filho, médico maranhense filiado ao União Brasil, partido do Centrão, deputado federal e ministro das Comunicações, assunto do qual não entende rigorosamente nada. Ele está sendo acusado de desviar dinheiro de emendas parlamentares ligadas às suas atividades na Codevasf do Maranhão, e com muita "classe": a partir de organização criminosa e lavagem de dinheiro. Juscelino já foi pego utilizando aviões da FAB para assuntos privados "por segurança" e outras coisitas menores. Entende de malandragem com recursos do erário e de muito mais, exceto de Comunicação. Tanto que para melhorar a imagem do governo o presidente Lula chamou para perto dele o publicitário Sidônio Cardoso Palmeira, hoje ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social do Brasil. Entenderam como isso funciona?

Sempre houve corrupção no Brasil quando a política se acercou dos governos. Durante os quatro anos de Jair Bolsonaro ele entregou a administração pública ao Centrão para não sofrer impeachment, pois havia mais de 100 pedidos no Legislativo. E esse monstrengo politico fez uma grande festa, inclusive com o crescimento desmedido, inacreditável das emendas parlamentares que chegaram hoje a mais de CR$ 50 bilhões para júbilo de Juscelino e muitos outros. Para apoiar ou então não derrubar o governo o Centrão cobra espaço para ficar lá dentro, de preferência com todos os cargos ministeriais à disposição, a tal "porteira fechada" que permite desviar muito mais dinheiro público. Fome é isso!

Lula teve que atender a várias cotas para montar seu ministério com capacidade mínima de gestão e risco menor de impeachment, pois governa com um Legislativo hostil e um "mercado" que gostaria de vê-lo morto. Juscelino é cota do Centrão, mas hoje o dano que provoca - sempre foi corrupto, todo mundo sabe disso e agora a Justiça está em seu pé - é grande demais. Felizmente ele revelou no início desta noite que vai embora "se defender". Excelente. Lula sabia que precisava mandá-lo embora rapidamente, não importando quem vai entrar depois, não importando se com ou sem o aval do União Brasil pois ,caso contrário, estaria na alça de  mira da cota do fim do mundo. Essa da qual Bolsonaro se salvou. 

6 de abril de 2025

O ato patético


Enquanto escrevo esse artigo, os milhares de manifestantes pró-Bolsonaro que foram à Avenida Paulista nesse domingo pedir anistia para o ex-presidente e seus asseclas golpistas (foto) ouviram ou ouvem várias pessoas falarem as mesmas mentiras em nome da não punição de crimes cometidos no dia 08 de janeiro de 2023, mas sobretudo e principalmente um longo discurso de encerramento da manifestação feito pelo ex-presidente que joga todas as suas fichas na aposta desse perdão - o que só é concedido a culpados -, a única fórmula que talvez o mantenha fora da prisão nos próximos anos. Foi patético.

Num esforço de inversão de fatos que talvez nunca tenha sido visto antes no Brasil de tantas surpresas, o ex-presidente genocida e inelegível, ao lado até de governadores que o apoiam, chegou a dizer que "só um psicopata para falar que o 08 de janeiro foi um golpe". Não foi apenas e tão somente porque as Forças Armadas brasileiras se recusaram a aceitar participar dessa aventura. De mais uma. Gato escaldado tem medo de água fria...

Há carradas de provas nos autos dos processos que correm no Supremo Tribunal Federal mostrando o que se tentou fazer. E aquele 08 de janeiro foi apenas o ápice, ato final de um plano monstro de golpe de Estado que começou a ser engendrado no mesmo dia em que o ex-presidente tomou posse quatro anos antes, pois jamais foi intenção dele deixar o poder. Ao contrário, seu projeto era o de se perpetuar com a ajuda das Forças Armadas. Essas mesmas que literalmente o expulsaram da corporação do Exército depois dos vários crimes que cometeu lá. Todos os que o acompanharam desde o início da aventura da presidência sabiam e sabem disso.

No trio elétrico do ato da Paulista estavam os governadores que dependem do apoio desse indivíduo para concorrer ao Planalto em 2026. Precisam daquele percentual de votos do gado bolsonarista que vai acompanhar esse Bozo até a sepultura, caso precisem. Cerca de 25 por cento. Só assim eles podem enfrentar o atual presidente Lula numa disputa nacional com chances de vitória. O dono da festa sabe disso e usa seus apoiadores como bem entende. Sempre usou.

Ao lado do carro de som havia na Paulista, dos dois lados, duas quadras tomadas por apoiadores da extrema direita. Segundo levantamento do Data Folha, feito de forma profissional, cerca de 45 mil manifestantes, o que mostra que Bolsonaro desidrata a cada dia que passa. Muito pouca gente para eleger um presidente, mas número capaz de fazer bastante barulho. Só que não o suficiente para transformar o Brasil, oficialmente, no País onde o crime político compensa. Nem mesmo quando se pretende tomar da figura de uma criminosa golpista para transformá-la na pobre diaba vitimada pela sanha assassina daqueles que não permitem o uso de batom em manifestações de protesto. Parece piada!

3 de abril de 2025

O Rolex de ouro

Houve um pedido dos senadores reunidos hoje com o presidente Lula na casa da presidência do Senado, em Brasília: a recriação por parte do governo do Ministério da Segurança ou qualquer coisa parecida com esse nome. Uma exigência para diminuir a pancadaria que em parte está jogando para o chão o prestígio pessoal do presidente. Além de o Brasil já ter ministérios em excesso isso preocupa por causa do que ter um aparato de segurança nacional lembra à maioria de nós. No meu caso, recorda um grande Rolex de ouro igual ao da foto acima.

O Brasil havia vivido, em1964, o golpe de Estado que tirou do poder o presidente João Goulart fazia pouco tempo e meu pai, Nelson de Albuquerque Silva usava para todos os atos um relógio dessa marca, bordas em ouro 24 quilates, comprado na época das vacas gordas da família. Amava sua joia e um dia chegou em casa do trabalho sem ela. Depois o vi dizer perto de minha mãe que o havia perdido. Não se falou mais no assunto. Era tema proibido dentro da nossa casa. 

A ditadura aconteceu há 61 anos e lá pelos idos de 1990, com o velho já vivendo em Vitória, provoquei o assunto e veio a história. Papai era dono da Thermoflux, fundição de alumínio que ficava no bairro da Mooca, em São Paulo, onde fabricávamos peças de motor de Simca. Um belo dia meu pai tirou o relógio para limpar as mãos, colocou-o sobre a bancada e não o encontrou mais ao voltar. Procurou, procurou e chamou a Polícia. O delegado ouviu os empregados um a um e depois falou com o velho Nelson: "Tenho três suspeitos e se eles forem comigo para  delegacia o relógio aparece. Só não sei se o ladrão volta vivo e também como vou fazer para proteger o senhor depois disso. Esse povo é daqui e barra pesada". Ele ouviu mamãe e mandou deixar para lá. Os suspeitos foram demitidos algum tempo após.

Décadas depois, na conversa que tive com ele ouvi de meu pai que ficou com receio de deixar a mulher viúva com cinco filhos pequenos. O delegado, conhecido ou amigo de Sérgio Paranhos Fleury, sabia como obter confissões rápidas e dolorosas. Eu disse: "Então você sabia como tudo acontecia, mesmo sendo politicamente de direita?" Ele balançou a cabeça afirmativamente. "Mas eles achavam que aquilo era necessário. Enfim..."

Trago esse fato à memória numa época em que  extrema direita política brasileira é muito mais violenta, inconsequente e irresponsável do que antes. Além do que, não tem respeito pelo Estado Democrático e de Direito, como mostram os fatos de 08 e janeiro de 2023. E a nossa democracia foi obra de muito trabalho. Os canalhas atuais não podem encontrar um caminho para tentar outra aventura como a de 64. Esse ministério proposto jamais deve servir como atalho para a canalhada fascista. Ele precisa ser cercado de cuidados!