Nos dias que antecedem a exibição do documentário "Folha Corrida", que conta os crimes cometidos pelo Grupo Folhas, de São Paulo, é preciso ir mais adiante no assunto porque a crônica postada ontem está longe de o esgotar. Estamos falando da década de 1970, quando ser preso ilegalmente, torturado e assassinado pelos órgãos de repressão política da ditadura militar era muito fácil. Vários brasileiros caíram e cerca de meio milhar morreram na garras dos porões repressivos. E ser jornalista não dava passaporte a ninguém, a não ser para terminar no lugar mais sujo e violento dos cárceres nazifascistas.
Ninguém naqueles anos sabia o que um dia seria a internet. Nós, os correspondentes, escrevíamos nossas matérias em laudas de papel, nas máquinas de escrever, e depois levávamos esse material para ser digitado em uma agência dos Correios, no meu caso na Agência Central, que ficava ao lado da Praça Oito de Setembro. Lá o diretor Aderson de Brito Inglez Bonates, pai do hoje psiquiatra e jornalista Paulo Bonates, facilitava a vida de todos e pedia a um funcionário que digitasse o material e o transmitisse rapidamente, via teletipo, para as redações dos jornais. Dessa forma, era o próprio aparato tecnológico de então do governo que nos ajudava. Uma doce ironia...
A gente podia também passar informações por telefone, mas era perigoso. Um perigo chamado "grampo", e não valia a pena correr o risco de ir parar no pau de arara. Quando alguém precisava muito falar, o fazia por códigos vários. Reuniões do PCB, por exemplo, só em lugares sem suspeitas. Como aconteceu num colégio da Ilha do Príncipe ou na ginecologia do Centro de Saúde de Carapina. Lá descobrimos porque uma das mesas tinha duas "pernas" articuladas e que eram abertas para exames. Os médicos do Partidão, cujos nomes ainda se omite, tinham as chaves desses lugares e eles eram os mais seguros.
Revejo na memória o dia em que o velho comunista Vespaziano Meireles, o Meirelinho, se deparou comigo numa reunião dessas. Levou um susto antes de abrir sorriso de orelha a orelha. Era o encanador da casa dos meus avós e jamais poderia imaginar o neto do patrão comungando dos mesmos ideais da militância operária. Velho militante comuna, havia sido craque do Rio Branco com o nome de Parafuso e tinha orgulho de ter conseguido formar os filhos, um dos quais era excelente médio e cirurgião neurológico em Colatina.
Mas voltemos ao assunto. A gente sabia que jornais como a Folha apoiavam a ditadura. Mas não a ponto de serem pombos correios do sistema repressor, ajudando até mesmo na prisão de jornalistas. Que o inferno, se houver, tenha os Frias no seu lugar mais quente. E não é por outro motivo que carros da empresa foram cercados e queimados quando se descobriu que eles eram usados com essa finalidade (foto acima). Até mesmo naquela época havia reação contra as violências governamentais, apesar de todos os perigos.
Por isso é de grande importância o trabalho de dois anos que o grupo liderado pelo diretor premiado Chaim Litewiski realizou para concluir o trabalho "Folha Corrida", que conta toda a história vivida no período ditatorial pela empresa da Rua Barão de Limeira, centro de São Paulo. Os quatro capítulos da obra serão exibidos no domingo dia 27 deste mês às 20 horas pela plataforma ICL. É o retrato de uma época na qual mais de 80 empresas colaboraram com a ditadura militar brasileira, algumas como a Volkswagen, Ford, Kodak, Caterpillar, Toyota, Brastemp, Johnson's do Brasil, Embraer, Petrobrás e inúmeras outras, que a lista é grande. Responsável, esse documentário é fruto de pesquisa conduzida por seis universidades: UFRJ, UFRRJ, UEM, UERJ, FCRB e PUC e levará quem o assistir aos bastidores da repressão, aos anos de terror que o Brasil viveu faz pouco tempo e para os quais não quer voltar nem com anistia, como na (acima, na segunda foto).Não devemos perder esse tempo atual com os devaneios criminosos da nova extrema direita brasileira que se esconde nas sombras, saída dos esgotos onde dormitou por um longo período de tempo. Ela não se compara nem em sombra ao que houve antes. Recordo-me agora e até com saudades de fatos passados na redação de A Gazeta, a da antiga Rua General Osório, 127. Numa determinada época Carlos Fernando Monteiro Lindenberg Filho, o Cariê, convidou para ser diretor do jornal José Antônio de Figueiredo Costa, o Zé Costa. Era preciso haver um "vaselina" na empresa para proibir publicações passando a mão na cabeça, como se desse conselhos. Coisa que aquele Diretor Executivo de então não fazia bem.
Um dia o secretário de redação Chico Flores ficou em dificuldades porque queria no jornal material sobre a questão da região do contestado Espírito Santo/Minas Gerais, assunto litigioso que vira e volta retornava como tema, e o editor de Política, Gutman Uchoa de Mendonça, já tinha ido embora. Eu havia enviado matéria sobre isso para a Folha de S Paulo na véspera e Chico me pediu as laudas emprestadas para "refundir" e usar em A Gazeta. Entreguei. Horas depois, indo embora da redação para o encontro protocolar com os amigos no Britz Bar, fui abordado por Zé Costa: "Meu filhinho, não repara, mas sua matéria não vai sair". Eu apenas sorri. As opiniões contidas no texto e dadas por entrevistados eram contrárias ao que a empresa da família Lindenberg pensava sobre esse espinhoso assunto. Era essa uma forma indolor - e rara - de censura jornalística.