Trabalhei como correspondente da Folha de S Paulo durante os tempos duros da ditadura militar brasileira. Era contratado informalmente pela "Agência Folhas Interior Estados", a figura jurídica que permitia à Empresa Folha da Manhã S/A usar material jornalístico em todos os sete jornais da rede de então, seis de São Paulo e um de Santos, pagando um único pró labore. Meu dileto amigo Rogério Medeiros era o correspondente de O Estado de S Paulo, e este usava os colaboradores para abastecer a Agência Estado. Trabalhando em A Gazeta eu recebia todos os dias o material dessa agência e conseguia identificar vez ou outra as matérias feitas pelo velho Rogério. Os jornalistas têm "impressão digital" em seus textos.
Eram os tempos da censura a tudo. Em O Estado havia censores dentro da redação e quando um material era retirado publicava-se receita de bolo ou trecho de poesia clássica no lugar. Em outros, como o que eu trabalhava, um serviçal da Polícia Federal passava lá todos os dias para entregar a lista das matérias censuradas. O Globo tinha em Roberto Marinho o diretor de redação que não permitia à ditadura se meter na redação. Mas a apoiava. Também eram aliados do regime jornais como o Jornal do Brasil, Estado de Minas, Zero Hora e muitos outros da chamada "Grande Imprensa". Uns mais, outros menos. Hoje, quando se sabe que a Folha ultrapassou todos os limites da falta de dignidade humana isso é muito triste. Só não é inacreditável.
É preciso dizer que nós, correspondentes, não participávamos em nenhum grau dos modos de apoio ao regime militar. A não ser quando éramos informados de que determinada matéria havia sido retirada por "ordens superiores". Em todos os dias, afora raras pautas de iniciativa se o assunto era muito importante, recebíamos ordens das redações e cobríamos fatos. Ninguém era mal informado para desconhecer que a ditadura prendia ilegalmente, torturava e matava. Tomávamos cuidado. Para quem participava de partido proscrito as reuniões eram sempre cercadas de muito cuidado, mas ninguém em momento algum deixou de lutar pelo fim da ditadura militar, o que veio apenas em 1985, após 21 anos do 1964.
O documentário "Folha Corrida", que conta em quatro episódios a história dantesca do jornal para o qual trabalhei, era algo que precisava ser feito. A família Frias, dona daqueles meios de comunicação, cometeu uma série imensa de crimes. Como os artífices das tramas já estão mortos, resta contar a história, o que vai ser feito a partir de maio pela plataforma ICL. Já está havendo pre-estreia e depois da plataforma outros meios divulgarão o resultado do trabalho. Documentos não faltam, imagens também. Vai ser possível saber que durante a ditadura carros de distribuição de jornais do Grupo Folhas eram usados para transportar tropas de choque e policiais que prenderiam ilegalmente, torturariam e matariam brasileiros nos porões da ditadura. Não podemos perder o documentário.
É por isso, dentre outras coisas, que muita gente como eu sente nojo quando ouve a extrema direita atual, descendente da daqueles tempos, pedir "liberdade de expressão" ao falar sobre os demais fascistas atuais. É muito triste ouvir certo débil mental eleito deputado federal pelo Espírito Santo dizer que quer ver morto um presidente da República sem que nada aconteça com ele. É triste ver essa gente desfilando sua até agora impunidade como se não houvesse amanhã. E até mesmo em entidades culturais. Chega a dar arrepios.
Mas também vontade de seguir lutando.
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