Como hoje e amanhã esse fato estará sendo avaliado por inúmeros textos de diversas fontes, sobretudo de meios de comunicação, prefiro me ater a dar uma explicação relativa a como a ditadura militar brasileira conseguiu parir os torturadores que, de Carlos Alberto Brilhante Ustra até aqui, torturaram e mataram por suplício tantos compatriotas nossos nos subterrâneos do regime político de extrema direita que mesmo hoje, meio século depois, teima em tentar ressurgir dos esgotos onde se esconde.
Foi a filósofa Hannah Arendt quem melhor explicou isso ao criar o conceito de "banalidade do mal" ao acompanhar o julgamento de Adolf Eichmann em Israel quando este foi condenado à morte depois de ser sequestrado na Argentina e levado para aquele país. Geralmente essas pessoas não eram e não parecem monstros. Eram e são apenas burocratas geralmente medíocres que cumprem o "seu dever", seja ele qual for. Eles aceitam normas sem reflexão, adotam comportamentos desumanizados e são capazes de crimes em larga escala que acabam se tornando comuns no âmbito de uma rotina burocrática.
Sim, pessoas como Brilhante Ustra, por exemplo, são tidas na conta da gente comum. Um torturador brasileiro, inquirido que foi por sua vítima durante uma sessão de torturas e ao ouvir desta a pergunta sobre se ele não tinha coração, respondeu; "Tenho, mas quando venho trabalhar deixo meu coração em casa". O comandante de Auschwitz, Rudolf Höss, morava com a mulher e os filhos ao lado das dependências do campo de massacre, só preocupado em aumentar a eficiência de seu trabalho. Colhia hortaliças, plantava flores e dava carinho à mulher e aos filhos à sombra das chaminés de onde saia a fumaça dos fornos crematórios. Sua história foi retratada no filme "Zona de interesse".
Os torturadores que mataram o jornalista Vladimir Herzog eram pessoas que todos os dias saiam de casa de manhã cedo para trabalhar. Deixavam lá mulheres e filhos. Torturavam, matavam e depois voltavam para ver televisão com a família. Na rua onde morei algum tempo com minha avó materna, ainda adolescente, uma vizinha dela era defensora ferrenha das torturas e assassinatos de todos os que fossem inimigos da "revolução". Falava disso dia e noite, menos na hora da Buzina do Chacrinha, que não deixava de ver de maneira nenhuma. Não creio que jamais tenha sentido dor na consciência. Para quê?
Por esses fatores e outros como por exemplo o fato de os ditadores de plantão estarem todos envolvidos direta ou indiretamente nos atos de prisão ilegal, torturas e assassinatos de adversários políticos, os estertores da ditadura foram duros, demorados. Em 1975, além de Herzog foram mortos o jovem dirigente comunista José Montenegro de Lima, o jornalista e editor do jornal clandestino Voz Operária Orlando Bonfim Júnior (ambos assassinados com injeção letal que podia ser de matar cavalo), mais dez dirigentes do antigo PCB, todos "desaparecidos" e por último, em janeiro de 1976, o operário Manoel Fiel Filho, também assassinado sob tortura no DOI-Codi. Esses fatos provocaram clamor público, a demissão do comandante do Segundo Exército, outros afastamentos e o estado terminal do regime de exceção que durou 21 longos e dolorosos anos no Brasil.
Amanhã, no dia em que a morte de Herzog completará 50 anos, a gente deve pensar em exemplos. Aquele jornalista era judeu e foi enterrado depois de um culto ecumênico do qual participaram o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e o rabino Henry Sobel na ala dos que morrem por morte que não seja suicídio, pois desde sempre se sabia e se sabe que ele foi assassinado. E para os judeus tirar a própria vida, um dom divino, é proibido. Pecado e há um lugar segregado nos cemitérios para estes.
Se hoje nosso pensamento está voltado ao Vlado, vamos pensar também em Manoel Fiel Filho, morto logo em seguida e no mesmo lugar, em Rubens Paiva, trucidado em uma instalação do Exército e em mais todos os outros brasileiros que ao longo dos 21 anos de desespero que durou a última ditadura militar do Brasil foram tirados de nós. É que agora esse movimento pode voltar na calda de cometa de gente como o condenado Jair Messias Bolsonaro, militar fracassado e reformado à força, deputado medíocre, golpista nato e reverenciado por uma verdadeira multidão formada por falsos patriotas capazes de sacrificar a democracia de seu país para trazer um sociopata de volta ao poder, ainda que à custa de vermos ressurgir em nosso horizonte o vírus de uma nova banalidade do mal.
Vladimir Herzog, presente!






















