22 de maio de 2021

Delírio de outono (conto)

Normalmente uso esse espaço para artigos. Mas hoje resolvi oferecer a vocês um conto (?). É meio longo, mas tinha que ser assim. Espero que leiam. E o texto os faça  sorrir um pouco e  refletir muito. O tema bem que merece. Até mais ver:


- Eu também quero ser general!

         Houve silêncio na sala onde se realizava a reunião ministerial. Digamos, silêncio obsequioso. Os participantes do encontro se entreolharam e de início ninguém falou nada. Então o senhor presidente insistiu:

         - Quero ser general!

         O vice, que estava presente depois de muito tempo exilado e sem participar de reuniões da cúpula do poder resolveu fazer uso da palavra:

         - Não pode, presidente. O senhor não fez carreira para chegar a isso. E já é o comandante em chefe. Esqueceu?

         O presidente balançou a cabeça negativamente e voltou à carga. Como se fosse uma carga de cavalaria. Ou de paraquedismo:

         - A gente faz uma lei. Quero ser general e pronto. Por que você pode e eu não posso?

         O outro, o vice, deu uma pigarreada daquelas que a gente dá para tomar fôlego e encontrar argumentos antes de tentar continuar sua argumentação. Diante do silêncio sepulcral que persistia na sala, enfim voltou a argumentar:

         - Veja, presidente, as coisas não são assim. Existem leis que regem a República!

         - Mudo por medida provisória ou PEC. Mas quero ser general e pronto. Meus filhos me pediram, minha mulher achou o maior barato e a gente até simulou uma solenidade de sagração já no Alvorada. Está tudo combinado. Minha filha ainda brincou e disse: “Está tudo combinandinho, papai”. Não posso decepcionar minha família, meu bem mais precioso.   

          O vice voltou a tentar argumentar:

         - Vamos admitir que fosse possível. Mas isso no plano civil. E no militar, o que eu diria para o estado maior. Para os chefes, comandantes e chefes das três armas?

         - Diga que eu quero. Que é a vontade do povo, da nação e que os militares de todas as forças já ganharam tudo o que eu podia dar a eles. Tudo mesmo, inclusive milhares de cargos no governo, tirados de civis. Então, posso ser general e pronto.

         O vice coçou a cabeça. Tirou a máscara com a bandeira do Flamengo de cima do copo de água à sua frente e tomou um gole. Voltou a botar no lugar. Estava sem ela no rosto porque diante do presidente, em local restrito, ninguém se atreve a usar máscara. Ficou um silêncio constrangedor até que a ministra, única mulher presente, perguntou:

         - O que a gente tinha vindo aqui discutir mesmo? Qual era a pauta dessa reunião?

         Quando o presidente fez menção de se levantar, já com ar furibundo em direção àquele que se atrevera a mudar o foco da discussão, o ministro da secretaria geral da presidência da República atalhou, quase aos gritos:

         - Ele pode sim. Ele não foi eleito por mais de 57 milhões de brasileiros? Pode sim. Vamos encontrar um caminho.

         O presidente estufou o peito de felicidade. Fez um sinal de mão de positivo endereçado ao seu ministro no instante exato em que todos os demais, em uníssono, completaram: “Pode sim!”. A ministra que havia provocado a interrupção chegava a espumar enquanto gritava sua concordância.

O vice voltou a dar uma fungada. Tirou a máscara do Flamengo mais uma vez de cima do copo, tomou um novo gole de água e depois se voltou para todos:

         - Tá bom. Então como nós vamos fazer isso? Estou perguntando porque não basta vencermos a resistência do Alto Comando. É inconstitucional, pombas! Aliás, pergunto: essa merda de reunião está sendo gravada?

         Todos acorreram ao sistema de gravação do Planalto e apagaram os registros. Pronto, nada havia sido gravado. O filho 02, especialista nessas questões ainda deu uma conferida, checou os registros nas redes sociais e fez sinal de positivo. Então o presidente voltou a falar à plateia:

         - Vou fazer um decreto!

         O vice disse logo em seguida:

- A constitucionalidade vai ser questionada.

O presidente pareceu perder enfim a paciência:

- E daí, porra? Eu por acaso sou um presidente banana? Por que vocês acham que gastei três bilhões do orçamento para comprar, digo, para convencer o Centrão a me apoiar? Faço o projeto passar pelo Congresso sem o menor problema. Bom, talvez isso custe mais uns dois bilhões, mas valerá a pena.

Todos ficaram em silêncio mais uma vez. Novo silêncio obsequioso. O dono da pasta da Justiça logo disse que faria o texto do decreto. Cinco outros disseram que sairiam naquele momento mesmo para ir ao Congresso. Mais dois falaram que iriam procurar ministros do Supremo com os quais mantinham boas relações de “cordialidade e respeito”. Mas o vice não estava convencido:

- O senhor se lembra de como deixou o Exército, presidente? Os registros do processo que o senhor respondeu e que quase custou sua expulsão ainda estão lá. Vivinhos da silva! De repente alguém pode ressuscitar esse cadáver fedorento, sobretudo no Exército onde o senhor não é unanimidade. Nem tudo é o Clube Militar nessa vida...       

Aí a gritaria foi geral. Todos se voltaram contra ele, o vice, sobretudo o filho mais velho, o senador que já havia embarcado na aventura de mala e cuia. E foi ele quem gritou mais alto:

- Fake News! Coisa de comunistas safados! O presidente saiu porque não queria ficar mais. E contra todos os conselhos. Mas a quadrilha internacional comunista, sempre de olho no Brasil, criou uma narrativa caluniosa para nos atingir. Só que o gado, digo, os apoiadores não vão permitir uma coisa como essa. Todos acreditam que estamos no poder em nome e pela vontade de Deus. E Ele quer um presidente general de cinco estrelas.

Foi a apoteose!

O vice não teve mais argumentos. Os poucos que ainda não haviam se manifestado favoravelmente se entreolharam e devagar começaram a se retirar para a Esplanada dos Ministérios. Cada um para seu endereço. Cada qual para o seu quadrado.

E agora, José? O que fazer. O vice lavou as mãos. “Nem aos comandantes das forças levo uma notícia dessas”, pensou. O presidente pareceu ler os pensamentos dele e anunciou que estava convocando uma reunião dos comandantes militares para dizer a todos que é general. Ou então que será. A partir daquele momento todos estavam engajados na tarefa de desenvolver ações no sentido de concretizar o sonho presidencial. O maior mandatário dirigiu-se ao vice enquanto ele pegava a máscara do Flamengo e deu o assunto por encerrado:

- Vamos fazer isso, sim. O Brasil merece. Afinal, tivemos presidentes generais durante o regime militar democrático ou não? E eles eram aceitos ou não? Afinal, pense, isso é mera formalidade! Você já me disse várias vezes que alguns oficiais superiores ficam constrangidos em terem que obedecer a um capitão. Eu também ficaria. E o problema estará resolvido dentro de pouco tempo.

O vice deu de ombros:

- Plano do senhor, problema do senhor. De minha parte desejo sucesso à empreitada. Mas um conselho: antes de estar tudo pronto com o Congresso não deixe a imprensa saber de nada. Caso contrário o mundo cai na sua cabeça antes do apocalipse.

Dessa vez foi o presidente quem deu de ombros. Agora estavam na sala somente ele e mais 01, 02 e 03 que haviam chegado atrasados, mas conhecia todos detalhes do plano elaborado no Alvorada. E foi ele quem se adiantou para falar, já em papo íntimo de família:

- Estamos todos em campo. Na batalha, combatendo o bom combate. Vim aqui para a gente traçar planos caso tudo dê certo. Nesse momento o presidente explodiu de vez:

- Caso? Caso um diabo. Está decidido. Não abro mão da minha autoridade de maneira nenhuma. Temos que ir daqui já com tudo combinado. A começar pelo seguinte: depois que eu receber o generalato, qual de vocês vai me cumprimentar me chamando de “Generalíssimo presidente”?

Um olhou para a cara do outro. Ninguém queria tomar a iniciativa de argumentar. Então foi o presidente quem voltou à carga, jogando as pernas para cima e as colocando sobre a mesa de trabalho. Dali olhava para a Praça dos Três Poderes onde adora andar a cavalo nos finais de semana nos quais exulta com as faixas que pregam o fim da democracia e a intervenção militar com ele no poder. Tentou falar de modo bem coloquial e didático:

- Vocês querem que alguém os chame de maricas? Filho de presidente macho tem que ser macho também. Então, vamos combinar o seguinte: 01, que tem cargo mais alto por ser senador, vai abrir o discurso com o “generalíssimo”. Na mesma hora vocês dois vão apoiar. Vou colocar do nosso lado a turma que não dorme de tanta vontade de ir para o Supremo e garanto que eles vão urrar junto de vocês...

- Tem o que sonha em continuar como PGR... – atalhou 03.

- Isso, mesmo. Então – prosseguiu o presidente – a coisa degringola. Vai virar um pandemônio esse negócio todo e quero ver se algum ministro do STF vai ter peito de nos enfrentar. Ninguém ousará tentar derrubar meu decreto. Sairei de lá nos braços do povo, só não sei se nos braços das pessoas ou a cavalo. Acho que vou preferir sair montado...

02 pediu palavra:

- É um plano perfeito. Coisa de gênio. Só mesmo poderíamos imaginar coisa desse quilate...isso não tem como dar errado. Viram como os ministros saíram daqui? Todos em ordem unida, prontos para cumprirem suas missões.

- Claro. – disse o presidente – ninguém é burro. Eles sabem que eu demito mesmo. Cortar umas cabeças de vez em quando tem lá suas vantagens. Fica todo mundo com um pé atrás...

- Sim, tem que ser assim – disseram os três ao mesmo tempo.

Então o presidente relaxou. Esticou ainda mais as pernas sobre a mesa e ficou olhando fixamente através da janela de sua sala de terceiro andar. Parecia divagar e foi falando quase sem sentir.

- Gozado, mas antes de ser eleito não me lembro de ter entrado nesse gabinete. Afinal, aqui dentro só tinha comunista, ladrão e vagabundo. Teve uma idiota também. Mas depois que cheguei aqui adorei tudo. Hoje eu sinto como se isso tudo fosse meu. Como se sempre tivesse sido. E não quero sair daqui. Foi por isso que tivemos a ideia do generalato. Do generalíssimo. Isso combina comigo e com os planos que sempre tivemos de nunca mais sairmos daqui. Esse é o nosso lugar. Na época dos generais, de 1964 a 1985, eles cometeram o erro de fazer eleições. Sou contra, mesmo indiretas...

- Somos contra – atalhou o 02.

- Sim, somos contra, – prosseguiu o presidente – e por isso o plano é não sair mais daqui. Eu me reeleger, aprovar no Congresso um projeto de reeleição sem limite de número, ficar sempre na presidência e depois passar o bastão, quando me der na cabeça, para um de vocês. É isso o que quero: um País da família. Nas mãos de nosso clã, ao alcance de nosso poder. Sempre sob controle. E vai dar certo. Sempre que há o Congresso sob controle – e dá uma gargalhada debochada antes de continuar – e a perspectiva de uma ruptura, um golpe de Estado “com eu” no poder pode voltar a povoar a Esplanada...

- Agora não está dando – falou novamente o 02.

- Não está dando porque os caras são uns maricas, uns merdas. – continuou o presidente – Eles não querem se envolver em aventuras. Estão com medo de repetir 1964. Umas porcarias. Mas nós sabemos o que queremos e a hora é agora. General até o ano que vem e depois o salto para mais quatro anos do mais novo generalíssimo da história desse nosso País.

Uma salva de palmas coroou o final da fala.

O Presidente Generalíssimo estava realizado. Chegou a dar um longo bocejo como se tentasse despertar de um sonho. Os filhos olhavam-no maravilhados, como se fitassem um deus vivo. Então ele perguntou:

- Já estão sendo tomadas todas as providências? 01, que havia ficado por instantes ao celular, foi quem me respondeu.

- Sim. Já estamos com gente indo para o Congresso, para o STF e só vai ser preciso o senhor definir a hora exata de comunicar a decisão aos militares e à imprensa. Como eu odeio esse termo, a imprensa. Depois será apenas correr para o abraço.

O presidente respondeu:

- Vou ver isso tudo. Tomem seus assentos porque o avião vai decolar. Cada um sabe exatamente o que fazer e agora a sorte está lançada. Não sei falar isso em grego.

- É latim – disse o 02.

E o presidente se levantou, sendo seguido pelos filhos. Novamente se dirigiu à janela. Olhou para a Praça dos Três Poderes, para o horizonte do Planalto Central, para o infinito como se o seu olhar pudesse chegar ao oceano e vencê-lo. Então, de repente parou. Chamou os filhos de volta e disse com o peito inflado de ar.

- Última forma. Vamos correr com o decreto do generalato, com todas as providências porque preciso chegar ao ano que vem já com cinco estrelas. Mas depois que eu for reeleito, a coisa muda. Vou começar a costurar para subir acima deste cargo.

Os três se entreolharam e perguntaram ao mesmo tempo:

- O que você vai querer ser, papai?

Então sua excelência fitou o horizonte novamente, colocou a mão direita aberta entre dois botões superiores de seu paletó e disse encerrando definitivamente o assunto do dia:

- Marechal de Campo!

   

    

2 comentários:

Jô Drumond disse...

Bom dia, Álvaro!
Acabei de ler seu texto parodístico. Classifico-o assim porque, normalmente, a paródia tem caráter duplo (como o seu), com um ponto de vista predominantemente jocoso ou satírico (como o seu) e traz à tona o que “o outro” deixou de dizer. O “parodiador” tenta mostrar o ridículo da situação por meio de uma imitação caricata, que causa o riso ou a zombaria, exatamente como feito em “Delírio de outono”.
Como jornalista e literato, você tem o dom de trabalhar com as palavras; como cidadão engajado, não se furta ao direito de se indignar com os desmandos na política e no governo. Tudo isso se apresenta nessa tessitura textual com grande mestria.
Parabéns pelo texto, Álvaro. Grande abraço.

Álvaro José Silva disse...

Obrigado, Jô. Ser elogiado por você é uma hora.