23 de agosto de 2023

Deus, o tráfico e as armas


Um belo dia a pastora e pesquisadora ligada à igreja Assembleia de Deus em Nova Iguaçu, baixada fluminense, Viviane Costa, teve uma surpresa em meio a uma aula de teologia em Parada de Lucas. Um aluno disse ter deixado o tráfico e se tornado pastor, a que um outro retrucou se dizendo pastor traficante de drogas e que recebia intervenção divina no combate aos "inimigos". Ela resolveu pesquisar o assunto, conhecer o fenômeno em um mestrado em ciências da religião pela Universidade Metodista até lançar o livro Traficantes Evangélicos: quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus.

Em Parada de Lucas mesmo existe um espaço conhecido como Complexo de Israel onde um outro pastor de nome Álvaro Malaquias Santarosa, vulgo Peixão (vejam só!), busca uma associação de nomes sagrados para os cristãos com a violência institucionalizada. Assim como estes há outros. Viviane percebeu que as religiões sempre fizeram parte do mundo do crime e o nome de Jesus vem sendo usado há tempos ligado aos mais diversos contextos de violência. Não são apenas os criminosos que fazem isso: muitos policiais também. Eles são a raiz das bancadas da bíblia que infestam hoje o poder legislativo e dão origem ao que é chamado de fundamentalismo religioso, crença baseada na intolerância e na violência.

Mesmo sem ter base em pesquisas, sempre acompanhei a vida legislativa brasileira de modo crítico, a tentar entender como as diversas correntes de pensamento se associam. Quem faz isso vê hoje que o partido político não é um fim, mas apenas um meio. E que a intenção é chegar ao poder impondo pensamentos que na maioria esmagadora das vezes nada têm de republicanos ou base legal. Dou um exemplo: nada há mais próximo no Brasil político atual que as bancadas da bíblia e da bala. Elas são sócias em interesses que se cruzam no tempo e no espaço. Armamentistas e fundamentalistas religiosos usam a pregação da violência da mesma forma, com a mesma desenvoltura. E se a gente for passar os olhos pela história humana, recente ou não, vai ter que convir que algumas das maiores tragédias da civilização foram cometidas por grupos que agiam e matavam supostamente em nome de Deus.

Ter a consciência de que isso está acontecendo não apenas em nosso país, mas também em muitos outros pelo mundo afora é o primeiro passo para combater essa monstruosidade. Aqueles que professam uma religião têm mais condições de fazer isso que um livre pensador como eu. Mas urge fazer logo. A associação entre crença religiosa, tráfico de drogas e armas de fogo é um risco imenso. E se eu me acho com o direito de matar quem pensa diferente de mim e só por isso, pior ainda.  Nós estamos trilhando esse caminho nos dias de hoje.      

15 de agosto de 2023

Novos ovos de serpente


Faz exatos cem anos que a Alemanha enfrentou a maior hiperinflação de sua história. Foi uma época tão dramática que quando alguém botava as mãos em dinheiro ganho tinha que correr para uma loja e comprar logo tudo o que era preciso e possível. Se demorasse em entrar nas filas os preços poderiam até dobrar (foto). Eram os tempos da República de Weimar, nascida em 1919, após o término da Iª Guerra Mundial quando uma constituição de caráter social e parlamentar foi criada para a transição alemã pós monárquica. A constituição representava um avanço. Tinha preocupações sociais relacionadas ao trabalho, à educação e ao conforto do povo alemão que se preparava para uma democracia representativa. O que deu errado?

Quando a guerra terminou os países vencedores impuseram à Alemanha uma rendição em termos tão draconianos relacionados a indenizações que era impossível pagar. Veio a penúria financeira e o valor do dinheiro deixou de existir. Esse era o caldo de cultura ideal para o surgimento no horizonte alemão de um demagogo capaz de seduzir as massas. Ele chegou na figura de um austríaco, outrora cabo do Exército usando bigodinho ridículo e discursando com muito o ódio e preconceitos raciais. Chamava-se Adolf Hitler. Acabou com a República de Weimar e a democracia em 1933.

Coisa parecida está acontecendo com a Argentina onde domingo foi entronizado um vencedor das prévias presidenciais que em muito e assemelha a esse tipo de gente. Quer acabar com o Banco Central, com o peso, ministérios, quer poder vender órgãos, enfim, fazer uma política de terra arrasada. Não nasceu de espólios de guerra, nem nada parecido com isso. Veio da penúria provocada por políticos incompetentes, corruptos e que levaram os argentinos e enfrentar uma crise econômica sem precedentes. Sem acreditar em mais nada, elegeram o nada.

O problema é que esse tipo de doença pega. Em menor nível consegue ameaçar os Estados Unidos com a figura de Donald Trump, já desembarcou na Hungria, na Itália e anda cercando outros países como a Espanha e, talvez, Portugal. Trata-se de uma pandemia de desesperança que leva povos pouco crentes nas artes da política a acreditaram naqueles que dizem ser contra ela mesmo embarcando nas caravelas dos partidos políticos e das eleições constitucionais para poderem arrotar valentia.

O Brasil tem que tomar cuidado. Um fracasso do governo federal de agora pode nos levar a surfar nessas ondas nefastas. Lutar pelo sucesso - ou ao menos pelo não fracasso - desse governo é apostar em nós mesmos. E nosso futuro. Temos que acreditar que nossas ações não nos levarão a abrir as portas de uma democracia conquistada com tantos esforços ao longo de 21 anos à aventura louca, irresponsável de ver mais um psicopata no poder da República. Já chocamos ovos de serpente em passado não muito remoto de nossa história. Chega disso. Todos atentos, então.              

10 de agosto de 2023

É isso o que nós queremos?


- Qual é a senha?

Ele não sabia de senha alguma. Morava na pensão onde foi preso. Na entrada do lugar estava afixado o prato do dia. Lá haviam sido escritos feijão, arroz, bife, salada, macarrão, coisas como essas. Os policiais que o prenderam pensaram que aquilo era uma senha terrorista e levaram o pobre fotógrafo Gildo Loyola Rodrigues para um quartel. Ele foi cruelmente torturado. Um militar, ao notar que um de seus dados estava machucado, falou: "Vamos machucar mais!" E literalmente esmagou aquele dedo com a coronha do fuzil. As torturas foram tão fortes que Gildo precisou fazer tratamento psiquiátrico  por longo tempo depois de solto. E sequelas ficaram.

Um dia entrevistei meu velho amigo para uma revista de cultura, "A angaba", que infelizmente teve vida curta. Ele se emocionou muito, mas percorreu em palavras todo o seu calvário mais uma vez. Doce figura humana, militava numa célula comunista sem jamais ter cometido violência alguma. Era uma questão de convicção política. Ao final foi inocentado pela Justiça porque nada, rigorosamente nada, poderia ser provado contra ele. Mas, repito, sequelas ficaram.

É isso o que nós queremos? É esse o Brasil que vamos deixar para nossos filhos e netos? Se for, mostrem-me onde fica a porta da saída.

Os últimos tempos têm sido terríveis. Chovem denúncias, todas comprovadas, contra os marginais que governaram o Brasil nos últimos tempos. Deixaram atrás de si um rastro de extremistas de direita, de sonhos de destruição da democracia, de ruptura para com os valores democráticos, de extinção de conquistas sociais que sempre foram caras aos brasileiros. Têm raiva sobretudo e principalmente do fato de que eles, os fascistas, foram artífices da ditadura militar, e nós, os vários segmentos da esquerda democrática, aqueles que trouxeram o Brasil novamente para a normalidade constitucional. Eles estupraram a Constituição. Nós fizemos outra, cidadã, em 1988. Não nos perdoam por isso.

Agora mesmo a bancada capixaba no Congresso Nacional, salvo poucas exceções, é um desfile de figuras bizarras. Algumas dessas pessoas nem sequer são do Estado, mas mesmo assim terminaram sendo eleitas pelo fascismo brasileiro que atende pelo nome de "conservadorismo". Há um preço a ser pago por isso e os que elegeram esses marginais de hoje vão ter a conta pela frente. Até um ex-membro do esquadrão da morte capixaba por pouco não foi feito governador. É o horror tornado realidade.

Há, e sempre haverá opções políticas limpas, justas, honestas, para que nós as elejamos e elas nos representem politicamente em todos os planos da vida legislativa. Basta que os brasileiros se voltem para elas. Não podemos viver num país onde hoje o maior projeto legislativo em pauta agora é o de serem anistiados todos aqueles que cometeram crimes com o dinheiro público, usando-o de forma desonesta nas eleições. E ainda há o projeto de o fundo eleitoral passar dos cinco bilhões de reais. Sabemos que grande parte dessa fortuna vai ser embolsada por desonestos. 

Mas o pior são os planos de destruição da democracia, de anistiar ou absolver todos os que invadiram os três poderes da República em 08 de janeiro na calda de cometa de um projeto de golpe de Estado que o então presidente Jair Falso Messias Bolsonaro tentou orquestrar. Ele sente saudades da ditadura militar e de suas prisões ilegais, torturas e assassinatos. Adotou como seu o "Deus, pátria, família" lema de Benito Mussolini, acrescentando a isso um "liberdade" que amante da ditadura só tem da boca para fora. Afinal, em muitas ocasiões esse indivíduo exaltou o AI-5 e as figuras de torturadores.

Ele ainda quer saber qual é a senha! É isso o que nós queremos?           

8 de agosto de 2023

Outros esquadrões da morte?


"O que você 'ver' aqui

O que você ouvir aqui

Quando sair daqui

Deixe ficar aqui"

Estava na porta do delegado Oswaldo Simões Sales, o Quito, o cartaz com esses dizeres. Eu tinha ido à Superintendência de Polícia Civil na rua Graciano Neves, em Vitória, para cumprir uma pauta da Folha de São Paulo, jornal do qual era correspondente no Espírito Santo. Corria o boato de que um esquadrão da morte ligado à Scuderie Detetive Le Cocq agia no Estado matando pessoas ligadas a crimes e a criminosos. Perguntei ao delegado Quito se aquilo era verdade e ouvi:

- Claro que não. Isso é coisa dos bandidos e dos comunistas.

Naquela época, década de 1970, vivíamos em plena ditadura militar e as garantias individuais tinham sido jogadas no lixo pelos governantes. Era fácil matar e esconder cadáveres. Isso estava sendo feito pelos policiais que acreditavam nas soluções fora e acima das leis vigentes e hoje parece que ao menos os governadores de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais são saudosos desses tempos embora estejamos em um estado democrático e de Direito. É possível que o governo do extremista de direita Jair Bolsonaro tenha tirado o monstro da garrafa, agora que já não se pode mais prender ilegalmente, torturar e matar as pessoas, pelo menos por motivos de natureza política.

Menos de dez dias depois da minha entrevista com Quito o cemitério clandestino da Barra do Jucu foi descoberto. Os diversos esquadrões da morte passaram a ser notícia e isso de certa forma conteve a matança ao mesmo tempo em que os assassinos das polícias foram processados e presos. Passaram-se muitos anos até que agora a extrema direita se sentiu confortável para voltar a matar. A justificativa é sempre a de uma troca de tiros, de um confronto armado entre mocinhos e bandidos, claro que sempre com a vitória dos mocinhos e a morte de muita gente que não é bandida.

É hora de uma reação. Quem comete crimes ligados sobretudo ao tráfico de drogas tem que ser preso, processado e condenado. Mas aqueles que usam de uniformes e distintivos para matar por vingança, não importando se do outro lado há inocentes, têm que ter o mesmo destino. Não podemos conviver com a volta dos esquadrões da morte. Já chegam as milícias. Nas últimas chacinas como a do Guarujá (foto), litoral de São Paulo, várias câmaras de uniformes de PMs "falharam" nas filmagens.

Uma sociedade que não sabe a diferença entre o mocinho e o bandido está condenada à barbárie.           

1 de agosto de 2023

Amanhã vai ser outro dia...


Impossível evitar uma associação: vitimado por um câncer ao qual não conseguiu resistir apesar da cirurgia efetuada, morreu em Vitória Idivarci Alves Martins, um velho militante do PCB. Era da época de Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e tantos outros brasileiros que resistiram à ditadura militar lutando pela sigla do MDB ou outra como a do PT, mas jamais se entregando. Ao contrário de Idivarci e milhares de seus companheiros de ideologia, nem todos eram comunistas. Tinham em comum o fato de serem patriotas nos tempos em que esse termo ainda não havia sido prostituído pela política brasileira.

Os homens que viveram politicamente nas décadas de 1960, 70 e 80 tinham bandeira. E usavam suas crenças para exercer atividades políticas diárias, seja em partidos ou não. Durante os muitos anos da ditadura, o PCB de Idivarci e tantos outros eram siglas fora da lei. Das leis do governo que estuprou a Constituição brasileira.  E como não podiam erguer as siglas de seus partidos essas pessoas, militavam no MDB. Quem rompeu com isso foi o PT, movimento operário que surgiu para combater a ditadura dentro da legalidade. Era uma colcha de retalhos politico, o que sustenta até hoje. Mas naquela época quem não era?

Não quero - sinto que não posso -  dizer o que houve com a política brasileira para ela desembocar no que é hoje. Nessa escumalha, nessa excrecência que nasce nas câmaras municipais, passa pelos legislativos estaduais e termina em Brasília, na Câmara Federal e  no Senado. A falta de vergonha, hoje, é a regra de comportamento. É ela que permeia a vida do politico brasileiro, que na maioria das vezes não tem ideologia, não sabe a de seu partido e exerce a atividade diária nele porque não pode ser de outra forma. Sua visão começa pelo início de seu mandato e pela necessidade de conseguir a reeleição. Custe o que custar.

Muitos brasileiros acreditam que esse fenômeno vai se aprofundar ainda mais, mergulhando o Brasil na falta de horizontes políticos dignos e na venda de mandatos em troca de uma renovação ao final de quatro ou oito anos. Não creio. Prefiro acreditar que gente como Idivarci e tantos outros não lutaram em vão. Para nós que ainda temos um horizonte nesse Brasil de tantas lutas e que não aceita mais a tortura e a porrada da ditadura como é mostrado nessa foto, amanhã vai ser outro dia.

Há de ser!