24 de outubro de 2024

O direito ao fim com dignidade



Sem alarde, mas exercendo um direito que todo ser humano deveria ter, Antônio Cícero, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) colocou um fim à sua vida num suicídio assistido realizado na Suíça, onde esse ato é perfeitamente legal. Dessa forma disse "não" ao suplício do Mal de Alzheimer que o levaria a vegetar até o corpo finalmente se exaurir sobre um leito. Optou pela morte de forma consciente, de peito aberto, num ato de plena lucidez.

Aqui no Brasil isso é crime. Recentemente deparei-me com dois casos de morte por câncer em hospitais. Um ex-proprietário de torrefação de café, Uriel, e um ferroviário aposentado, José Jorge, não resistiram à doença. O segundo morreu tentando sobreviver. Já o primeiro recusou o tratamento paliativo e se foi também numa UTI, assistido por médicos e aparentemente sem dor. Há um pouco mais de tempo, num terceiro caso, minha dileta amiga Jeanne Bilich faleceu dentro de casa carcomida por um câncer que ela inicialmente se recusou a tentar tratar. Ao final, teve tratamento paliativo.

Coincidentemente fui ontem à tarde ao cinema ver "O quarto ao lado", monumental filme de Pedro Almodóvar. O enredo é simples: uma mulher está morrendo de câncer nos Estados Unidos - onde assistir suicidas é crime - e programa sua morte ao lado de uma velha amiga num lugar paradisíaco, após comprar um comprimido com essa finalidade. O filme é de uma delicadeza e beleza ímpares e ainda conta com atrizes maravilhosas. Toca fundo na gente com sua hora e meia de duração. No cinema, silêncio total.

Aqui no Brasil é crime uma pessoa, sobretudo na área médica, acompanhar um ato de morte voluntária de qualquer outra. Pior do que isso: hoje mesmo a extrema direita política, uma gente retrógrada, pretende tornar mais duras as penas de quem colabora com aqueles que decidem por fim à sua existência de forma lúcida, voluntária. E se a vida é minha e não quero chegar ao final dela sem cérebro e sem a dignidade para viver, tenho sim direito ao fim.

Às vezes sinto pena do Brasil com seus políticos travestidos de religiosos, mas que quando não tem ninguém vendo cometem as maiores barbaridades. Outras vezes sinto raiva. Hoje mesmo um deputado federal eleito pelo Espírito Santo, num ato irracional de outra motivação, entrou com um pedido para que a Polícia Federal investigue o acidente sofrido pelo presidente da República, Lula. Por quê? Por que ele não tirou fotos em cama de hospital fazendo ar de vítima como fazem outros?

Findar a vida às vezes é um ato de coragem. Assim foi com Antônio Cícero. Assim foi com  a história de Pedro Almodóvar que os cinemas estão mostrando. Uma ficção, sim, mas que nos aproxima da vida, da realidade de forma sublime e poética. O Brasil merecia ter mais à sua disposição a lucidez de pessoas que não tentassem prostituir a política levando-a a se transformar em um circo onde bandidos com mandato a usassem de forma vil.

Morrer pode ser opção e tem de merecer respeito.         

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