2 de fevereiro de 2024

"Meninos, eu vi!"


"Meu canto de morte,

guerreiros, ouvi:

Sou filho das selvas,

nas selvas cresci;

guerreiros, descendo da tribo tupi."

Foi ouvindo na TV a notícia do encontro de remédios destinados aos povos Yanomami jogados numa fossa em Roraima que me veio à mente o monumental poema "i-Juca Pirama", de Gonçalves Dias. Ele cantou a saga dos guerreiros timbiras e usou como título a expressão tupi que significa dizer "aquele que deve morrer". Foi uma professora minha da época de início de ginásio em São Paulo quem nos botou a todos os alunos em contato com essa poesia épica. Tenho certeza de que o grande poeta jamais imaginou que num dia desgraçado medicamentos seriam jogados numa fossa para que indígenas morressem em suas terras, definhando como se em campos de concentração nazifascistas.

Como surgiu isso no Brasil?

No meu romance "O faxineiro" descrevo uma passeata ocorrida em São Paulo às vésperas da edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, quando a Avenida São João estava tomada por estudantes, soldados da Polícia Militar e os brucutus, carros blindados que jogavam água e areia sob alta pressão contra os manifestantes que combatiam a ditadura militar capaz de nos infelicitar por 21 anos. A gente usava bolas de gude para derrubar cavalos...

Ali estava o ovo da serpente!

Foram os 21 anos de negação dos princípios do Estado Democrático e de Direito o que gerou o Brasil de hoje. Muito mais do que um ex-presidente inelegível e genocida, muito além daquelas "marcha da família com deus pela liberdade", o despertar de nosso extremismo de direita, do reacionarismo de grande parcela da população brasileira veio ao mundo nos anos que nasceram pouco antes do AI-5 e sobretudo depois dele. De 1964 - foi em primeiro de abril, OK? - até 1985 todos os pudores se foram e essa parcela do Brasil passou a ter orgulho de dizer "sou de direita", na maioria dos casos sem saber o que é isso, sem separar conservadorismo do reacionarismo crescente e desfilar pelas ruas impune e desavergonhadamente pedindo intervenção militar em nossas vidas.

E, pasmem, as rezas para extra terrestres, pneus e o ajoelhar patético diante dos quarteis militares não foram o ápice dessa onda de enlouquecimento sem sentido. Nem mesmo a tentativa de explodir um artefato terrorista próximo do aeroporto de Brasília para gerar uma ditadura fabricada e encomendada pelo genocida e seus asseclas. Por mais desgraçado que possa parecer, é o encontro dos medicamentos enviados aos indígenas descartados numa fossa o que representa esses tempos, esse desvario. É a tentativa de massacrar nossos povos originários o ápice do plano de destruição do Brasil brasileiro, esse que construímos em 524 anos.

Se amanhã ou depois alguém duvidar disso, de que os brasileiros levaram milhares de indígenas à morte pela fome e por doenças como a malária, nós se estivermos vivos poderemos dizer, ainda que com lágrimas nos olhos um: "Meninos, eu vi!"

Eu pelo menos vi!     

3 comentários:

Anônimo disse...

Campos de concentração! Com esta comparação dói mais ainda!

Anônimo disse...

Eu também vi! Como vi todas as barbaridades que essa raça de pijama verde oliva foi capaz de fazer com seu povo. O mais triste foi ver parcela desse povo pedindo bis!

Anônimo disse...

Se o mercúrio, a malária e as balas não matam todos, vamos eliminar o resto com inanição e falta de remédios.
Essa era a ordem bozolina.
Morte e vida bozolina