24 de janeiro de 2008

O hábito do cachimbo


Antes de tudo metafórica, a ditadura militar que governou o Brasil por 21 anos precisou cunhar termos e interpretações próprios para poder dar um ar de legitimidade ao que fazia. Esse hábito sobreviveu aos tempos vividos entre 1964 e 1985 e resiste até hoje nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas, sobretudo e principalmente no último deles, contrariando o histórico de resistência aos anos de chumbo.
Quem estudou naqueles tempos de “regime de exceção”, sobretudo em faculdades ou universidades, acostumou-se com a figura do professor de Educação Moral e Cívica. Figura intimamente ligada ao status políticos, era ele o encarregado de dar cores sutis ao regime. Falava da diferença entre oposição (legal) e contestação (ilegal). Explicava o sistema bipartidário, onde a Arena apoiava o Governo e o MDB se opunha a ele (mas sem jamais contestá-lo, pelo menos em tese). Discorria sobre “subversão”, o termo mais utilizado então, e também sobre os “óbices” que havia para o triunfo da democracia (sic!).
Aliás, sobre ela bem disse o então ditador em exercício, o general Ernesto Geisel, quando perguntado sobre se o Brasil era uma democracia, durante uma viagem à Inglaterra: “Bem, o Brasil é uma democracia dentro de sua relatividade”. Estava criado, para desespero de Einstein, o conceito da relatividade democrática. Nada cientifico, claro.
Mas o fato é que os diversos conceitos de subversão ou o pseudopoder de deter o avanço de quaisquer formas dela, desafiaram e desafiam os tempos. É isso o que faz com que alguns membros da Justiça, vez ou outra, invistam contra a liberdade de imprensa e assumam funções de censura. Ou de tutoramento da sociedade. Às vezes, proibindo a imprensa de noticiar este ou aquele fato. Dar a público nomes de filhinhos de papai envolvidos em crimes. De vez em quando, colocando-se acima da letra da Constituição. Em algumas ocasiões, assinando o inassinável, como fez um juiz que proibiu os motoqueiros seus súditos de usarem capacetes. Isso, em nome do combate à criminalidade, já que há hoje muitos crimes sendo cometidos sobre duas rodas.
Essas decisões tentam combater o que, no ver de certos magistrados, subverte o Estado, a moral e os bons costumes. Não importando se isso é ou não tarefa sua. Não importando saber se a população concorda ou discorda dessas incursões em terreno que deveria ser de decisões privadas e não públicas. Como, por exemplo, quando se proíbe que um determinado jogo de Internet seja visto por nossa juventude.
Aqui é necessário um adendo. Durante a ditadura, não foram todos os membros do Judiciário que fizeram coro com as decisões tomadas. Em alguns períodos, sentenças contrariaram tanto os militares que eles fizeram uso de medidas inconstitucionais, embora revestidas de força legal, para impor sua vontade. A Justiça não enfrentou a ditadura como instituição, mas deixou sua marca na resistência ao autoritarismo.
Enfim, em tudo no mundo há fronteiras. Mesmo num país onde as leis permitem múltiplas interpretações, funções de Estado são claras e delimitadas constitucionalmente. Por e para todos? Não, por e para quase todos. Porque às vezes membros de um determinado poder se permitem ultrapassar o tênue limite entre o legal e o ilegal, sobretudo e principalmente porque, em última análise, serão eles mesmos que terão de dizer se essa fronteira foi ultrapassada. E eles decidirão segundo suas crenças. Em alguns casos, de acordo com o hábito do cachimbo.

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