24 de setembro de 2023

Aborto é questão de miséria


Impossível lembrar quando isso aconteceu porque éramos crianças. Um belo dia papai chamou um táxi e nos mandou a todos, mamãe e os cinco filhos, para a casa de um seu irmão, meu tio e padrinho. Dá lá só sairíamos tarde da noite. Era o ato final de uma tragédia que desabou sobre nossa família. E tudo porque a empregada havia engravidado sem programar, não teve meios de interromper e gravidez, apertou a barriga até onde não mais podia e acabou dando à luz dentro de casa, no quarto onde dormia. A criança nasceu morta e foi escondida debaixo da cama. Era intenção dela tirar de lá e descartar o feto tão logo fosse possível, mas uma hemorragia forte a impediu de fazer isso. Mamãe, que não sabia da gravidez, viu aquilo e pediu a meu pai para levar a mulher a um hospital das proximidades para que fosse avaliada.

"Onde está a criança? Já chamamos a Polícia!", disse o médico secamente ao meu pai. Então o velho pediu para entrar e perguntou à mulher o que havia acontecido. Ela disse que engravidara do namorado, sem condições de criar o filho. Tentou aborto em clínica clandestina, mas não tinha dinheiro para pagar. Escondeu sua condição de grávida pelos nove meses, sempre atando a barriga fortemente com uma faixa para parecer que apenas estava ficando gorda. Matou o filho, que nasceu espontaneamente. A Polícia foi até nossa casa, recolheu o cadáver e ainda houve um inquérito que deu um trabalho danado. Foi um trauma para muita gente e a pobre mulher nunca mais apareceu por lá.

Sempre que ouço discussão em torno do assunto aborto eu me lembro dessa história. A questão, ao longo dos anos, é colocada em pauta sempre e conservadores, evangélicos extremistas, católicos "romanos" e aproveitadores os mais variados entram no assunto para prometer o inferno após a morte àqueles que apoiarem a pauta. E os que a combatem nunca precisaram de clínicas clandestinas. Abortam em consultórios de aborteiros, longe da opinião pública e ponto final. Ou então fazem isso na Europa onde é mais tranquilo porque em alguns países a prática é legal. E ainda dão um belo passeio pelo Velho Continente...

Esse tema foi votado pela presidente do Supremo Tribunal Federal, a ministra Rosa Weber, que é a favor da descriminalização do ato até a 12ª semana de gravidez. Corretamente! O pleno vai decidir a questão sob fogo cerrado de extremistas que não sabem o que é viver e morrer na miséria. Os miseráveis são pessoas que não temem ser excomungados porque já estão no inferno desde o nascimento e vão ficar nele até a hora da morte.

Mas para os aproveitadores de ocasião, aqueles que hoje abundam no Congresso Nacional prometendo até boicote a esse mesmo Legislativo caso a questão da demarcação das terras indígenas não atenda a seus interesses pecuniários, abrir mais uma frente de luta e atender a interesses muitas vezes inconfessáveis porque escusos, vale muito a pena. E vale porque significa votos daqueles que defendem seus pontos de vista sem olhar para o mundo excomungado dos que passam fome e são alvo de todas essas violências das quais são vítimas durante a vida. Descriminalizar a aborto é permitir que eles possam viver sem o risco de sofrer processos como sofreu a empregada de meus pais. Os demais podem ficar tranquilos; vão passar o resto de seus dias abortando agora legalmente, aqui ou no exterior. Já os que honestamente são contra esse ato não vão aderir à prática, alias como já fazem normalmente. Na sociedade laica continuarão com esse direito, mas sem impor suas crenças aos demais.

Viram como é simples? E nem será necessário ver Jesus no pé de goiaba!    

Um comentário:

Anônimo disse...

Fiquei chorando….
Triste situação!
A corda só rompe pelo lado mais fraco.!