16 de junho de 2024

Abortos e canalhas


Lembro-me vagamente, pois era muito pequeno, de papai e mamãe nos retirando de casa, meus irmãos e eu, e nos levando para a do tio José Álvaro, meu padrinho. Logo em seguida a Polícia chegava a nosso endereço para recolher de lá o cadáver de um natimorto, filho da empregada. Ela havia passado a gravidez toda escondendo sua condição com tiras envolvidas ao corpo e não a revelou em momento algum, mesmo sendo inquirida por minha mãe. Pariu no quarto onde dormia e, sangrando abundantemente, pediu socorro a meus pais, seus patrões. Papai se lembra de ter sido procurado por um médico que o julgava pai daquele morto ao questionamento de "onde está a criança?" A situação só não ficou definitivamente dramática porque a mulher disse ter engravidado do namorado, escondido a gravidez e dado à luz no quarto. Viu que a criança estava morta e a escondeu sob a cama.

Meu pai ainda pagou um advogado para livrar aquela pessoa de maiores complicações, mas tão logo ela foi liberada pela Polícia, desapareceu. Nunca mais soubemos dela e, acredito, nem sequer a Polícia. Eis o perfil da pessoa típica que buscava aborto no passado: pobre, quase miserável e ignorante. Hoje a esse perfil somam-se milhares de crianças vítimas de abusos sexuais até mesmo em casa. Meninas de 10, 11, 12 anos, como aconteceu aqui no Espírito Santo onde moro, com uma que precisou interromper a gravidez em Pernambuco.

Nosso país está cheio de problemas para resolver, e em vez de se concentrarem neles, canalhas colocados no Congresso Nacional por nós, brasileiros, elegeram uma tal "pauta de costumes" para tratar dela em seus mandatos. Abandonam os temas realmente importantes para fazer demagogia barata e cometer crimes contra o cidadão comum tentando impor aos demais princípios que nem mesmo eles possuem, pois muitos já foram flagrados cometendo os mais diversos desatinos, inclusive em diversos casos envolvendo costumes. Como "pastores" de inúmeras confissões evangélicas de fachada, apaixonadas por dinheiro.

Quando se ataca o direito legal à interrupção da gravidez no Brasil, condena-se sobretudo mulheres pobres. E crianças... As ricas pegam aviões, viajam para a Europa e fazem aborto nos países onde isso é legal. Passeiam bastante e voltam para seu país. Poucos ficam sabendo. É justo que quem quiser possa interromper uma gravidez indesejada em casos de grave risco de vida, feto anencéfalo ou estupro. E deveria ser crime falsos moralistas investirem contra essas pessoas ou seus responsáveis, como é feito hoje.

Também peca a igreja quando demoniza crianças, adolescentes e adultas que estão diante desse dilema. Refiro-me especificamente à Igreja Católica, que faria um bem imenso se não continuasse a classificar como pecado o uso de métodos anticoncepcionais entre as mulheres. Elas podem e devem usá-los para não colocar no mundo pequeninos condenados à fome e à falta de instrução num país onde a miséria não é considerada crime por esse bando de anencéfalos morais levados a Brasília pelo reacionarismo brasileiro.     

Um comentário:

Anônimo disse...

Desta vez você se superou, quando aborda dois temas atuais e de certa forma interligados: pessoas inescrupulosas decidem temas delicados e tão sofridos para a sociedade.
Com o exemplo vivenciado pelo autor o texto foi ainda mais …. desgraçadamente enriquecedor.